A leitura de obras literárias sempre foi uma constante no meu tempo livre. Primeiro, os clássicos da literatura infantil foram uma porta de entrada para esse mundo mágico. Depois, pude me encantar com a leitura de clássicos da literatura brasileira, portuguesa, grega, inglesa, norte-americana, espanhola, hispano-americana, etc.

Porém, como toda relação de longas datas, o relacionamento entre mim e a literatura passou por várias crises e há um certo tempo nos afastamos. Nesta última semana, contudo, estava organizando a minha estante de livros e Helena, de Machado de Assis, se sobressaiu e me convidou à sua releitura. Assim, o meu afeto por esse grande autor brasileiro reinou e me fez recair no mundo da literatura.

Ler esse fundador da Academia Brasileira de Letras é regressar ao meu passado e imergir nas recordações da adolescência, quando esse escritor fazia parte do meu cotidiano. Inclusive, em meio a indecisão de cursar as graduações de Direito, História, Geografia e Letras, esse bruxo soprou aos meus ouvidos: “faça a faculdade de Letras”. Quem sou eu para contrariar Machado de Assis?

Conheci a obra machadiana por meio da sua literatura. Porém, mais tarde, a sua biografia despertou muitas inspirações no meu imaginário adolescente e sonhador: mulato, de saúde frágil, origem humilde, sem acesso à educação formal e exercendo diversos trabalhos desde a infância, num contexto histórico do Brasil império.

Apesar disso, superou todas as adversidades, saiu do Morro do Livramento e conseguiu ser presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras. Além de se tornar uma figura icônica no âmbito da literatura nacional e ser um dos nossos melhores cartões postais na literatura internacional. Então, no mínimo, sua biografia nos inspira de forma catártica a crer que nada é impossível e que todos podemos superar os nossos limites.

Nascido em 21 de julho de 1839, este escritor chegou a ser referência no Realismo nacional. Porém, também produziu obras tidas como pertencentes ao período Romântico, como Helena, por exemplo. Esta obra, publicada em formato de folhetim, prendia a atenção das mulheres da sociedade carioca da época por abordar temas como: morte, mistério, incesto, destino, traição e amor impossível. Entretanto, não se configura como um dos livros da autoria machadiana mais conclamados pela crítica. Apesar disso, já podemos ver em Helena a profundidade de personagens femininos à frente da sua época.

O livro foi publicado em 1876, conta uma história que ocorre durante um período relativamente curto, no ano de 1850. A obra é um registro dos costumes e valores sociais da sua época. Inclusive, o próprio autor admite que essa obra é um capítulo da história do seu espírito dessa época e acrescenta: “cada obra pertence ao seu tempo” (p. 13).

O enredo de Helena nos faz adentrar num plano diegético bucólico, encantador e cheio de curiosidades. No início, a morte do conselheiro Vale, a tristeza da sua perda para os familiares e amigos, o espanto da descoberta da existência de uma filha bastarda que ele reconhecia como herdeira em seu testamento. Assim, desde o princípio da narrativa, adentramos de forma muito realista no cotidiano da vida campestre e pacífica de Andaraí. Onde passamos a compartilhar a sua atmosfera com os personagens machadianos, principalmente alguns dos seus protagonistas como Helena, D. Úrsula, Dr. Estácio e Eugênia.

A heroína da história não fora aceita sem resistências, principalmente por parte de dona Úrsula, mas o desejo do falecido foi obedecido e ela, que estava em uma idade de 16 a 17 anos, passou a fazer parte daquela família. Pouco a pouco, foi conquistando o seu espaço e afeição naquele novo lar. Afinal, “Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família” (p.30).

A entrada de Helena para a família do conselheiro Vale tampouco agradou a Camargo, homem ambicioso e interesseiro, “que nada conhecia mais grave que o dinheiro” (p. 102). Uma vez que ele pretendia casar a sua filha, Eugênia, com Dr. Estácio, objetivando um casamento rico em todos os aspectos para a sua filha. Todavia, o fato de Estácio dividir a sua herança com uma meia irmã diminuiria a riqueza adquirida por meio desse matrimônio.

A convivência harmoniosa em Andaraí é interrompida por várias vezes, o que causa no leitor um estado de alerta constante, haja vista que há sempre a apresentação de um problema, seu ápice e sua resolução do início ao fim da obra. Isso pode ser interpretado como um dos reflexos dos romances de folhetim da época e que Machado de Assis soube reproduzir com muita habilidade.

O narrador onisciente, muito presente na obra machadiana, nos apresenta os diversos problemas da obra: primeiro, a morte do Conselheiro Vale, seu testamento e a revelação da herança para uma filha, cuja existência não era conhecida; depois a vinda de Helena para a chácara de Andaraí e a sua paulatina aceitação por parte de todos; em seguida, a doença de Úrsula e a sua cura; depois, as visitas secretas de Helena a Salvador e a revelação do seu misterioso passado; na sequência, o casamento eminente de Helena com Mendonça e a descoberta do amor de Estácio por ela. Por fim, o desfecho trágico da história.

Neste romance machadiano, a trama é bastante fluida e prende a atenção do leitor por meio de elementos emocionais como medo e curiosidade. As vozes presentes nesta obra nos revelam o enredo criado por um escritor habilidoso com as palavras, cujo repertório intelectual é muito amplo. Isso fica evidente pelas menções da bíblia, de clássicos da literatura grega, francesa e inglesa.

Todavia, também podemos encontrar diálogos de vozes não tão evidentes como as anteriores. Como, por exemplo, o diálogo entre Helena e O Morro dos Ventos Uivantes, escrito por Emily Brontë. Ambas narrativas são ambientadas em uma chácara; apresentam um amor impossível entre “irmãos”; uma intensidade na crueldade e na paixão, tão comuns nas tragédias gregas; além da semelhança no desfecho das protagonistas.

O tempo é também outro elemento que une essas narrativas, já que 1850 corresponde ao ano no qual se passam os eventos de Andaraí e corresponde ao ano no qual Charlotte Brontë escreve os dados biográficos do único romance escrito por sua irmã. Poderíamos, ainda, realizar muitas outras comparações entre esses dois clássicos da literatura. Porém, vamos nos deter e convidar o estimado interlocutor à sua própria comparação mediante a leitura de Helena (Ed. Martin Claret) e O Morro dos Ventos Uivantes (Ed. Penguin Books).

Por último, é importante ressaltar que, apesar da sua relativa simplicidade, este livro de Machado de Assis apresenta muita sabedoria sobre diversos temas transcendentais. Como por exemplo, a fala de Estácio ao expressar: “não vale a pena desperdiçar afetos, Eugênia; sentirá mais tarde que essa moeda do coração não se deve nunca reduzir a trocos miúdos nem despender em quilharias” (p. 36). Portanto, esse livro nos mostra que tragédias podem acontecer quando desperdiçamos afetos, quando deixamos as emoções e os sentimentos mal geridos guiarem completamente as nossas vidas.